sábado, 17 de agosto de 2013

Uma de meu Baú

Hoje tiro de meu baú um texto que escrevi há exatos vinte e sete anos, em 1986. Não acho que seja o caso de fazer qualquer atualização. Segue como foi originalmente escrito.

PARA VOCÊ LER, COM TODA A DESATENÇÃO QUE DISPENSA NORMALMENTE A LEITURAS DISPENSÁVEIS

Impossível que assim não seja. O pacto aqui é de ócio, mesmo. Encontram-se, por mero acaso, um leitor desinteressado e um autor desinteressante, cada qual no seu papel, à falta de o que mais fazer.
Assim, ao dirigir-lhe a desnecessária palavra, sinto que somos igualmente culpados.
Puro passatempo. Nada, pois, de tentar entender, ou pior, compreender o sentido de minhas palavras. Por deliberação própria, elas não pretendem dizer nada mesmo, pretensão esta que garantidamente hão de cumprir.
Também, por que é que em vez de minhas insossas palavras, você não está lendo agora um desses clássicos imortais, hein? Ah, e se estrangeiro, no original.
Que nada. Pelo fato de ainda estar me lendo até agora, você sem dúvida nenhuma é daqueles que quando dá pra evitar um clássico nem por um segundo hesitam. Evitam, mesmo.
Nada há de errado com os tão reputados clássicos, mas eles nos predispõem negativamente. Um Homero, um Virgílio, um Camões, e todos os demais dessa mesma laia de gigantes, já de saída se nos assomam como qualquer coisa da qual estaríamos, no barato, a quilômetros de distância (e aquém, ainda por cima). Daí nossa indisposição para com aquele tom que se nos afigura pedantesco, aquela inatingibilidade sadicamente calculada, que já de cara nos humilha.
Profundidade demais, assim, não há medíocre que agüente. Muito aborrecidos, afinal, esses tais clássicos universais. Eu os acho.
Depois, cá entre nós, pra que diabos ficar escarafunchando os fundilhos da alma humana num cruel semi-desnudamento de certas verdades vá lá que profundas, mas sempre desencantadoras?
Depois ainda, pra que refletir? Isso é coisa só para uns poucos. Só mesmo certas aves raríssimas, detentoras daquela inegável superioridade que mais as estigmatiza do que distingue.
Mediocridade, ignorância, isso sim. É tão menos inquietante, tão menos diferenciador, tão menos raro, tão mais cômodo, tão mais igualante, tão mais e tão menos sei lá o quê mais. Nós, os oligofrênicos, os néscios, os apedeutas, os indoutos, os iletrados, os analfaburros, nós, o que mais nos chamem-nos Eles, nós é que formamos a esmagadora maioria. Sempre o fizemos, e digam o que quiserem dizer os advogados da falaz massificação da cultura, sempre a constituiremos. Por desconhecermos (eis o nosso verbo) nossa força, ignoramos também nosso direito à dignidade.
UNAMO-NOS JÁ. Está na hora da tomada de consciência! Vamos ecoar aos quatro ventos o som, mesmo que desafinado, de nosso hino-grito-de-guerra:
- O BURRO/ UNIDO/ JAMAIS SERÁ VENCIDO!
- O BURRO/ UNIDO/ JAMAIS SERÁ VENCIDO!
Percebe como não há sofrimento na leitura das banalidades ou baixezas produzidas por estilistas incompetentes? É que a gente não cresceu, não se aperfeiçoou, não evoluiu, não aprendeu porríssima nenhuma, e nada aconteceu contra nossa integridade de medíocres, nem contra nosso amiúde minúsculo amor-próprio. A única mudança (mas esta é inevitável) terá sido o envelhecimento correspondente ao tempo consumido na leitura de tais besteiras. Ah, mas os “outros” leitores também estão envelhecendo. Pelo menos quanto a eles, bem feito!
Normalmente, a gente nem se dá conta do envelhecimento. Cada segundo passado é um a mais na nossa idade, e um a menos na felizmente impredizível distância que nos aparta da morte.
Na infinita e cruel moção do tempo, lá vamos nós todos, os coevos do presente, sabendo muito bem pra onde e, a rigor, nada mais sabendo de certo. Quando sentimos a morte aproximar-se (o que já vinha acontecendo desde o nascimento, ou melhor, desde a concepção), é porque na verdade ela já chegou. Aí...
Destino comum, ela é fim necessário para toda e qualquer vida individual. E no geral, a vida continua. Sempre.
Chegar, ela chega mesmo, se se nasceu. Fatalmente, ela chega.
Última visita desagradável que temos de receber, é sempre na pior hora que ela chega, e raramente a convite. Nunca é bem-vinda e, pela idade que mesmo não aparentando com certeza ela tem, a pobrezinha já deve estar pra lá de acostumada a ser recebida do jeito que é, sempre sob protestos, com toda aquela choradeira e a maior má vontade.
Agora vir, ela vem mesmo. Isso é que vem.
E vem a pretexto de qualquer coisa, quando não sem pretexto nenhum, logo. Existem óbitos explícitos: causa mortis DESCONHECIDA.
Morre-se de medo, sim, mas também se morre ao manifestar coragem demais. De vergonha se morre, mas também de sem-vergonhice. De calor, mas também de frio. De sede se morre, mas de mitigar imoderadamente a sede também. Em qualquer lugar tem gente nas ruas morrendo de fome. A comida de rua também mata, e deve ser por isso mesmo que as mães costumam recomendar aos filhos que a evitem. Se doenças matam, por mais ridículo que pareça, e que me desculpem a franqueza os médicos e demais profissionais de saúde, no fim das contas o próprio exercício da medicina também mata de vez em quando, em seu próprio afã de atrasar ao máximo a visita garantida e inevitável da morte.
Morre-se em conseqüência de erros, tanto próprios como alheios. Mas também se morre, e muito, em conseqüência de acertos os mais variados (acerto de contas, acerto de pontaria, e por aí vai). E também tem gente aí morrendo por conta dos mais diversos desacertos.
Os versáteis, os que justificadamente se orgulham de tocar bem vários instrumentos, falar bem várias línguas, usar bem várias ferramentas, deveriam ver na morte o mais exponencial exemplo de versatilidade.
Não há nada de que ela não saiba como servir-se, e com que eficiência! Diga aí qualquer coisa que você acredita que não mate. Mesmo que nós não conheçamos nenhum caso de quem tenha morrido justamente dessa causa aí, é só “ela” ouvir e pronto, logo começarão a aparecer os primeiros óbitos.
Vejo a morte a servir-se igualmente de cada coisa... e também de seu contrário (que juntos formam uma coisa só). Ódio mata, amor também. Veneno mata, seu antídoto também. Uma arma mata, sua falta também. O ar (por exemplo, injetado na veia com uma seringa), a falta de ar; a pressa (no trânsito, nos herdeiros), e a falta de pressa. As batidas (em todos os sentidos dos respectivos homônimos), mais parto, aids, velhice, criancice, overdose (de qualquer coisa, pois tudo tem sua dose letal), cachaça, salário-mínimo, tudo isso comprovadamente mata melhor que Django e Sartana ao cubo.
Que posso fazer? É continuar, caneta a uma das mãos, a outra na consciência tão cheia da certeza de sua vinda como da ignorância de quando.
Paro aqui, ou prossigo? É claro que vai dar exatamente na mesma. O certo é que a morte vem. Nem adianta. E sempre restará muito mais por fazer do que o somatório do já feito.
O tempo disponível nunca foi nem jamais será suficiente para que bem possamos apreciar tudo quanto há de bom, por exemplo. Mas não dá, mesmo! Urge limitarmo-nos apenas ao melhor, e ainda assim com certas reservas. Não há tempo. Não há.
E aí você, sem nenhum espanto, lendo tudo o que eu escrevi e que sabida e consentidamente não leva e nem era pra levar a parte alguma, enquanto impiedoso e invariavelmente mal aproveitado, o tempo nem por um único instante parou de fazer o que só sabe: ir passando..., passando..., passando..., passando... ... ... ... .. .
Quanto desperdício! Considerável, mas dificilmente evitável desperdício.
Pela trigésima vez na vida, consegui desperdiçar um mais um ano inteiro, confesso. Isto porque hoje é dezoito de agosto. E sabe do que mais? Nutro ainda por cima uma baita duma esperança de alcançar a graça (sei lá que graça isso tem, mas vá lá) de ainda ter direito a muitos e muitos outros anos só para poder desperdiçá-los todinhos, vez após vez. Inescapável.
Fazer o quê com o tempo? Os anos nos ensinam coisas que os dias simplesmente não sabem, nem podem saber. E eu agora começo a ter consciência das décadas. Elas também, por sua vez, nos ensinam coisas que os anos simplesmente não sabem, nem podem saber. Estou entrando em minha quarta década, que se completará ainda dentro deste moribundo século. Na virada do novo século e milênio, estarei a meados da minha quinta década, a completar-se em dois mil e seis. E assim vai, e assim eu vou, ou melhor, os dias, os anos e as décadas vão me levando. E fica sempre aquela inevitável sensação de que a vida é curta. Pode ser. Mas também se faz bastante, se experimenta bastante, se sofre bastante, e no fim das contas a vida talvez nem seja mesmo tão curta assim como a queremos perceber. Poupar o tempo não dá. Nem emprestá-lo, nem roubá-lo, nem pô-lo a render ágio, nem aplicá-lo no open, nem depositá-lo como tudo o que tenho em minha ridícula conta corrente Bradesco, nem carregá-lo nos bolsos, nem especular com ele na bolsa, nem nada disso. Dá? Pra nada do que se faz com dinheiro o tempo serve. Não consigo entender por que cargas d'água tanta gente por aí acredita tão piamente que tempo é dinheiro. Cambada de débeis mentais!
Não posso permitir-me uma recomendação final de jamais desperdiçar seu precioso tempo! Se a fizesse, seria feia hipocrisia de minha parte. Que exemplo eu mesmo dou nesse sentido? E você também, ainda lendo essas minhas baboseiras trintonas. Logo eu, o maior descumpridor dessa enfim supérflua regra do não-desperdício. Que fique claro: eu desperdiço apenas meu tempo, já que a situação não me permite desperdiçar mais nada, pois mais nada eu tenho pra desperdiçar. Senão...
Pois o que eu lhe digo, amigo leitor, é bem outra coisa: desperdice, desperdice mesmo, dissipe, esbanje, inaproveite, jogue fora, seja um perdulário de mão (temporariamente) cheia para seu tempo, livre ou não. Encontre a melhor maneira, e seja feliz. Pinte os canecos enquanto dona morte não vem. Quando dona morte chegar...
Olha, nada de ficar esperando, tá? Como você bem sabe, ela não tem hora mesmo, né?
Ciao!