quarta-feira, 14 de maio de 2008

Sem Mãe

Você consegue imaginar que uma criança seja registrada apenas pelo pai, e venha no documento “mãe desconhecida” ou expressão quejanda, onde normalmente entraria o nome da mãe? Não lhe parece meio absurdo? Mesmo sem estatísticas, muita gente por aí apostaria na raridade, ou até na impossibilidade de um fato como este.

Mas imaginar a certidão, até que dá. É o que agora passo a fazer. Aqui, os fatos e as personagens são fictícios. Qualquer semelhança, e toda aquela baboseira de sempre, terá sido mesmo muita coincidência, pois eu estou inventando a coisa toda, esferográfica na mão que vai autografando tudo o que me vem.

Não precisamos de muitas personagens, como convém a um conto. E elas também não precisam ter nome. Pra quê?

O homem, um belo dia, se acha dentro de sua casa, onde mora só. Ele pode ser solteiro, viúvo, divorciado, marido desertor, ou qualquer coisa que, na prática, queira dizer que de mulher ele gosta, mas no momento não tem, ou pelo menos não vive com nenhuma. Mora sozinho, como já disse. Vai daí que alguém lhe chama lá de fora (ou bate à porta, ou toca a campainha). Ele não está esperando ninguém, muito menos àquela hora, que pode ser qualquer hora (do dia ou da noite) de qualquer dia, de qualquer mês, quase de qualquer ano. Vai ver do que se trata.

É uma mulher. Convém imaginá-la relativamente jovem, mais ou menos atraente, mas que não pareça muito próspera e mostre no semblante, nos movimentos, na voz, em tudo, um quê de desespero de mistura com revolta. Não a reconhece. Não se recorda de jamais tê-la visto antes. Antes, porém, de ter tempo para perguntar-lhe o que desejava, ouve-a chamá-lo pelo nome. Então, ela o conhece. Antes que ele se recupere da primeira surpresa, a de ela saber seu nome, eis que ela lhe transfere o bebê que traz nos braços e fuzila: “Aqui, seu safado, cachorro... toma, que o filho é teu!”

Por instinto, sente-se já na obrigação de não permitir que aquele ser humano inocente agora em seus braços se machuque. Põe-se em estado de alerta por conta daquele neném em seus braços primários, e o estarrecimento em que se encontra não lhe permite abrir a boca para falar. Aliás, nada lhe ocorre dizer, também. E a mulher simplesmente desaparece de forma tão repentina quanto aparecera, antes que ele dê por si. Ei-lo agora com um “filho” no colo, que lhe fora entregue por uma mulher que por mais que pelejasse não se lembrava de já ter nem sequer visto antes, que dirá de já ter feito com ela nada que pudesse dar naquele resultado que ela abruptamente lhe enfiara nos braços, dizendo aquelas palavras terríveis.

E agora? Aquela mulher sobre cuja identidade ele não faz a mínima idéia sumiu, e ele está com um bebê estranho no colo, deixado por ela, que saíra (ela) sabe-se lá de onde, e que fora sabe-se lá para onde. Está convencido de que a paternidade alegada por ela não tem a mínima chance de ser verdadeira.

Passa-se algum tempo. O bebê chora. Ele adivinha: é fome! Providencia o que considera adequado para alimentar seu “filho” (ou sua “filha”; a diferença entre os sexos nunca lhe pareceu tão indiferente). O que ele tem que fazer agora é cuidar do bebê. Tudo lhe parece o pior dos pesadelos. “Como é que pode, logo comigo! Logo agora! Tão assim, do nada! Tão do nada, mesmo!”.

Sem idéia de o que fazer, sai fazendo o que pode a cada urgência que a situação apresenta. Vai seguindo o que lhe sugere sua precária intuição masculina. Só agora percebe quanta utilidade existe naquele famoso sexto sentido que, ao que parece, só as mulheres têm.

O bebê volta a chorar. Ele calcula que fome ainda não deve ser. A última refeição fora só há uns poucos minutos, menos de meia hora. Dá uma espiada dentro da fralda. Fraldas limpinhas para troca, o bebê tem. Foram deixadas pela misteriosa mãe, ou então compradas às pressas pelo improvisado pai. O que vê confirma-lhe a suspeita. Com uma atrapalhação que o excesso de cuidado só faz aumentar, ele faz a limpeza daquela minúscula bundinha de qualquer cor plausível para uma combinação da sua com a daquela mãe. Na troca de fraldas, toma inevitável conhecimento do sexo do bebê, o que não lhe diz absolutamente nada. Mas vai se afeiçoando cada vez mais àquele ser, enquanto desempenha simultaneamente o papel que lhe fora imputado de pai, mais o improvisado de mãe. Mas não é que o bebê parece ser mesmo sangue seu? Como é que pode? Chega a notar vários traços de semelhança. Vai sentindo um prazer inexplicável a cada vez que descobre naquela repentina criatura cada nova coisinha que lhe pareça sua. “É a minha cara! Se fosse meu sangue mesmo, não pareceria tanto”.

Por falar em consangüinidade... Não conhecia mesmo aquela mulher, nem sequer no sentido de, ainda que vagamente, saber quem era ela, que dirá naquele sentido mais antigo ainda, o bíblico, de tê-la conhecido, e de ela ter concebido e dado à luz aquele bebê que lhe enfiara nos braços sem mais nem menos, dizendo aquilo e depois sumindo na poeira.

O bebê não poderia ser despachado de maneira que lhe viesse a trazer problemas de consciência. Isso não. A figura exata da mulher vai ficando imprecisa, dúbia na sua memória. O que permanece sempre bem nítido é só aquela voz inequivocamente carregada daquela absurda certeza, mas certeza, sem dúvida. Rumina todas as idéias possíveis sobre que providências tomar agora. Tudo lhe parece uma absurdidade só. O tempo vai passando, e ele precisa fazer alguma coisa definitiva sobre o destino daquele “filho”. Até que lhe ocorre ficar com o bebê. Porque não? Adotar a criança. A idéia começa a seduzi-lo. Não acreditava em destino nem em nenhuma dessas besteiras do gênero, como vidas passadas ou futuras. Vida para ele era só essa, a real que ele mal e parcamente conhecia. O resto, se algum, era pura especulação, puro delírio. Tremenda ironia do inexistente destino aquele bebê trazido por uma louca que a essa altura do campeonato já não fazia muito sentido esperar rever. Sumira, desaparecera.

Decide-se, enfim, pela adoção, e começa a aconselhar-se com todos os profissionais que a situação justifica. E tome de advogados, de assistentes sociais, de conselheiros tutelares, de psicólogos, de tudo. Pergunta daqui, indaga dali, informa-se cada vez melhor antes de dar o passo definitivo no sentido de assumir aquela paternidade imputada com tamanha ênfase, tão inesperadamente. Sai boquiabrindo todo mundo a quem menciona o fato.
Nesse fala-e-ouve, alguém lhe sugere um teste de DNA, só para remover qualquer dúvida. Inicialmente ele estrila, convencido de não conhecer mesmo a tal mulher que o acusara de ser o verdadeiro pai. Vasculhara a memória para o período relevante, nada ali encontrando que o levasse a ver proveito na despesa em que certamente incorreria para tirar tal prova negativa (desnecessária e inútil, no fim das contas).
É, contudo, aconselhado a fazê-lo cada vez com mais insistência e por mais pessoas. Até que se decide pelo tira-teima. Entendidos no assunto recomendam-lhe dois laboratórios dos mais conceituados (e caros, claro), em dois continentes. Envia a ambos as amostras, conforme as instruções recebidas. Gasta uma baba! Mas enfim chegam, quase juntas, as duas respostas que são no fundo uma só e a mesma. Estava pra lá de confirmado. A tal mulher não cometera qualquer erro, nem gramatical nem semântico, ao proferir aquela terrível última palavra que ainda ecoava em seus embasbacados ouvidos: “...teu!”.

Foi assim que passaram a constar na certidão: o nome completo do pai, um outro que ele escolhera para dar ao bebê juntamente com o seu sobrenome, e no lugar onde normalmente entraria o nome da mãe, apenas a expressão “mãe desconhecida”. Pelo que ouve no cartório, o caso não tem precedentes.

E ele continua sem entender como poderia ter dado início a essa história, ter protagonizado uma cena tão interessante de se protagonizar como personagem, ou como ator, ou como pessoa da vida (para ele) real, contracenando com aquela mulher que dificilmente ele esqueceria tão completamente assim, em tão pouco tempo. A própria cena provavelmente envolveria ensaios e tudo o mais, caramba. Como teria feito aquilo? Dormindo? Hipnotizado? Em transe mediúnico? Chapado? De que jeito, meu Deus do céu? Nada faz o menor sentido. A pergunta é um chicote hiperativo. Com toda a certeza, pra bancos de esperma nunca vendera, muito menos doara porra nenhuma. Mas a certidão do bebê assim ficou. Lá está ela. Poderá ser vista e lida pela mulher, caso ela decida reaparecer do nada e a qualquer hora, como costuma; ou por ele próprio, mais outra vez; ou pelo próprio bebê, depois de alfabetizado, bem como por todos os demais personagens ali presentes o tempo inteiro, mas que, propositadamente implicitados pelo contista, tiveram de guardar o tempo inteiro aquele profundo, aquele tumular silêncio de meros espectadores.

4 comentários:

Hermínia Nadais disse...

Pode até ser uma história muito bem imaginada... mas que está muito gira... lá isso está. E que pode muito bem ser uma história real... lá isso pode. Estas coisas podem acontecer das mais diversas formas... é só imaginar!
E que os homens têm grande capacidade de, sendo muito homens, fazerem um belíssimo papel de mulher... é um facto... Só que ainda há homens que não sabem ainda o verdadeiro valor que têm. Oxalá depressa o descubram.
Gostei muito do que li... voltarei... para ler um pouco mais... com calma... para interiorizar.
Bjitos

João Esteves disse...

Obrigadom Hermínia. A sensação de estar sendo lido em outro continente é muito agradável. Também a leio com gosto.

AM disse...

hi neo,

Ya u r right..Im not really into writing since I write a lot in my work as a legislative staff..lol..so all I have to do now is to post pictures of my activities....dn't really have time to write but I'll try soon...

João Esteves disse...

Please do, Am. I'm eager to read you through